Texto escrito em 1933, O Rei da Vela permaneceu esquecido por décadas, sendo redescoberto pelo Teatro Oficina em 1967, quando torna-se um dos ingredientes essenciais do banquete tropicalista que viria a explodir naquele momento. A peça mostrava em 67 uma atualidade surpreendente com sua leitura ácida de nossa burguesia nacional e suas relações promíscuas com o grande capital internacional enquanto ao povo restava ingressar no coro dos devedores e maus pagadores cujo fim inequívoco era a jaula pertencente ao escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Como uma celebração aos 50 anos da montagem do Oficina, os alunos do 3° ano da Escola Cidade criaram, ao longo deste semestre, estruturas ambientais, figurinos e composições musicais em única apresentação na Casa do Povo.
Fotografia, Captação e Edição de Vídeo
Thiago Simbol
Textos
Julia Pinto
DEVIR DA VELA
Devir, na filosofia, é um conceito que significa as mudanças pelas quais passam as coisas. No entanto, quando contextualizado dentro do ensaio de um figurino para a peça de Oswald de Andrade, O Rei da Vela, esse conceito se integra nessa experiência que é realizada por meio da cor e o espaço. Pretende-se nessa obra, elaborada por camadas de tecidos distintos e coloridos e por meio da (des)montagem das mangas, revelar as estruturas que a compõem, assim como o “tornar-se” de Aberlardo I para Abelardo II.
SEM TITULO
Gravitamos em diversas escalas. Gravitamos em torno de pessoas, de questões, de padrões, de hábitos. Te convidamos a experimentar a gravidade, em uma sátira de um sistema no qual todos estamos inseridos.
PLANTA REI
“panta rei” é a noção definida por Heráclito, na antiguidade, de que tudo é transitório, tudo é passageiro. Tal conceito aparenta justificar a constante sucessão de “abelardos” em nossa história. Uma das principais características de Rei da Vela é a sua perfeita adaptação em relação aos mais diversos contextos da história do Brasil, praticamente desde o descobrimento até os dias de hoje. O processo de modernização conservadora proporciona a aparente sensação de mudança nas estruturas de poder ainda que os “novos” sejam apenas mais do mesmo. Tal recorrência é reforçada pelos meios de comunicação de massa, como o jornal, instrumento utilizado como base para a construção de um labirinto mental, no qual as manchetes e os excertos da peça destacados e propositalmente descontextualizados provoquem no leitor uma situação de reconhecimento da situação e pertencimento àquele momento histórico. A ironia do anacronismo é semelhante à ironia de ter a peça encenada pelo Teatro Oficina, tanto na década de 1960 quanto agora, em 2017, mantendo praticamente todo o texto original de Oswald de Andrade e, ainda assim, ser atual.
PLANO DE PROFUNDIDADE
Utilizando de referências advindas de épocas e vertentes diversas, como Tarsila do Amaral, Hélio Eichbauer e Stefano Poda, a maquete ilustra um novo cenário para o icônico, Ato 2 da peça o Rei da vela. O ato se passa numa ilha comprada por Abelardo I, para sua amada Heloísa, para que se consagrasse o casamento, ou melhor, a junção de duas famílias nobres paulistas. O cenário descrito no epílogo do ato é retratado aqui com certa fidelidade, porém, adaptado aos dias de hoje e especialmente moldado para o terraço da Casa do Povo. “Uma ilha tropical na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais. Sons de motor. O mar. Na praia ao lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro com a bandeira americana. Palmeiras . A cena representa um terraço. Platibanda cor-de-aço com cactus verdes e coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Um rádio. Os personagens se vestem pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial. Ao mesmo tempo que se ouvem os ruídos os personagens entram para se apresentar. Por fim, entram Abelardo e D. Cesarina.
TRAMA
A TRAMA, como uma estrutura parasitária, parte do aproveitamento de tecidos descartados pelas lojas do Bom Retiro, os quais entrelaçados – de nó em nó – compõem a espacialidade desse sistema de retalhos. Essa parasita se instala dentro da Casa do Povo e, próxima aos banheiros, se alimenta das excretas humanas, engolindo e vomitando tudo e todos que se aproximam dela. Sustentada pela força carnívora produtiva, a TRAMA é um convite de descanso, um abrigo permanentemente ocupado por corpos em substituição, os quais conservam essa estrutura visceral-tropical.
ÁUDIO ATO 3
O trabalho do grupo parte da ambientação da ilha tropical e dos discursos proferidos pelos personagens do texto de 1933: o som do mar, dos pássaros, motores, os gelos nos drinks, o helicóptero, … e os diálogos entre os indivíduos da elite ocupante da ilha. Buscamos trazer este ambiente e discursos para a conjuntura político-econômica atual – da reforma trabalhista e do ensino, do desmonte no funcionalismo público e nas Empresas Estatais sob a justificativa do combate a corrupção, … – a partir de falas retiradas de discursos político-partidários, entrevistas e telejornais da Rede Globo e tradução de filme norte-americano. Estas falas são pensadas como conversas da burguesia, muito à vontade em sua ilha, acerca da conjuntura atual. Ler o texto de Oswald de Andrade do início da Era Vargas, montado pelo Teatro Oficina no início do período da ditadura civil-militar, em 2017 – pós-golpe de 2016 – é deveras revelador dos ciclos econômicos e das disputas político-ideológicas destes períodos, marcados pela reação violenta dos setores das elites econômicas nacional e internacional às conquistas das classes populares e ao fortalecimento do Estado brasileiro. O áudio desenvolvido pelo grupo busca trazer este caráter cíclico a partir de recortes e colagens de músicas brasileiras: a introdução de Beleza Pura repetida insistentemente interrompida por tambores e cantos de roda de Otto (Condon Black), a entrada de Parque Industrial do Tropicália, e K.O. de Pablo Vittar, depois retornando à Beleza Pura. Nos apropriamos destas falas conservadoras e dessa produção cultural diversa com a preocupação de não reforçá-los enquanto discurso, mas sim as expor, como denúncia. A única fala contestadora destes discursos, retirada de um vídeo de um petroleiro indignado com o entreguismo do atual governo – ilegítimo – e da direção da Estatal, reforça o caráter crítico da leitura da peça pelo grupo e da proposição posterior.
TEXTURAS SONORAS
A intenção do projeto é traduzir os ambientes cênicos para ambientes sonoros. A sequência é montada a partir de uma apropriação e reinterpretação do texto do Oswald e principalmente as suas rubricas e portanto se constrói uma nova narrativa a partir de uma perspectiva subjetiva. Numa tentativa de fazer menção ao tropicalismo ou a um contexto histórico que envolvia a peça, o grupo utiliza recursos sonoros de diversas texturas e culturas. A partir disso, uma reflexão que atravessou o processo de criação foi a não utilização de elementos excessivamente figurativos como por exemplo, a palavra. De qualquer maneira, para que o ouvinte consiga se reconhecer, são reproduzidos sons que permeiam profundamente a nossa cultura como aberturas de televisão aberta, narrações de futebol, etc.. Por fim, a técnica usada é a de “samplear” mostras de áudio, sobreposição de canais a fim de criar novas ambientações, e texturas.
FRAGMENTAÇÃO
Para retratar o figurino da peça O Rei da Vela, o grupo optou por dois conceitos que se integram; o material e a performance. A escolha do papel é devido a irreversibilidade do mesmo. A ação com a projeção de conflitos políticos e sociais atuais e da época, mostrados na peça, são atemporais e retratam a persistência e cicatrizes deixadas na história. Para atrelar o material a performance, optamos por usar o papel branco, assim, quando a projeção encontra com o figurino, a absorção leva a ação irreversível do rasgo do papel.
PRETÉRITO
Espaço de transição entre o mundo exterior (2017) e o interior (1967), ambientado no período da primeira montagem do Rei da Vela. O tecido envergado por cima das pessoas propõe o desbravamento, referente a trajetória das personagens durante a peça assim como o período em que a mesma foi escrita. A sensação de tensão e de desconhecimento, referente ao caminho das personagens durante a peça assim como o desconhecimento do futuro em relação ao futuro sócio-político do Brasil.